Correndo de medo: falta de segurança na orla de Salvador deixa esportistas na mira de ladrões
Além do celular, criminosos estão de olho em relógios, tênis e fones de ouvido
Publicado em 30 de setembro de 2024 às 05:00
“157! Tome o relógio dela”, ordenou o líder, o menos franzino deles, após disparar o código para o roubo do Garmin da vítima, no último dia 14, no Rio Vermelho. Porém, a mulher, que corria na orla, foi mais ágil e escapou do cerco do trio de adolescentes, evitando o prejuízo de quase R$ 8 mil. Uma semana antes desse episódio, outro corredor de rua passou por situação semelhante. No entanto, não teve a mesma sorte: levou uma facada no braço durante uma tentativa de assalto no mesmo bairro. O CORREIO ouviu alguns atletas que fazem o percurso da Barra a Piatã e muitos disseram estar apavorados.
Segundo eles, o medo é um reflexo da insegurança que assola Salvador. “Na prática esportiva, 30% é o nosso corpo. Os 70% são a nossa mente. Fatos como esses mexem com o psicológico de todos nós. Hoje, a gente vive numa cidade inserida em um dos estados mais violentos do país. Como se concentrar para correr? Quando a gente percebeu que ladrões agiam, todo mundo retornou em pânico”, relata um corredor de rua, fazendo referência à situação do dia 14, quando adolescentes tentavam roubar a mulher na Rua Guedes Cabral, nas imediações da Igreja de Santana, sentido Barra. Por volta das 5h, ele era um dos integrantes de um clube de corrida que vinha na direção contrária pela Avenida Oceânica, entre um famoso restaurante de comida oriental e um residencial, quando foi informado por populares sobre o ocorrido.
“O medo é constante. A gente está a cada dia mais sem segurança. Não podemos praticar esporte na rua, porque podemos ser assaltados. Hoje, penso duas vezes antes de treinar. Não vou muito distante. De certa forma, a gente fica com medo”, diz uma corredora, que no dia 14 testemunhou a ação dos ladrões quando cercaram a vítima. “Quando ela passou da igreja, um deles tentou puxar a corrente do pescoço dela. Como não conseguiu, ele falou um código: ‘157! Tome o relógio dela’ e os outros, depois, tentaram cercá-la, mas, como ela já estava no embalo da corrida, conseguiu passar por eles e fugir”, conta a testemunha.
Ainda segundo o relato dela, a vítima, que saiu do Farol da Barra, por volta das 5h, e foi até o Quartel de Amaralina e retornou, foi abordada pelos adolescentes por volta das 6h. “Ela já tinha percorrido uns 16 km, quando os três ‘brotaram’ na frente. Deveriam ter entre 14 e 15 anos, na minha concepção. Não deu para ver se estavam armados, mas o desespero da vítima era tanto, que correu em disparada, deixando os três para trás”, conta. “Ela saiu gritando: ‘assalto, assalto’. Quem estava no sentido de Amaralina voltou às pressas. Por causa disso, as pessoas falaram inicialmente em um ‘arrastão’”, conta.
A vítima em questão é aluna de uma das mais renomadas assessorias de corrida de Salvador, a Runners Club. “Houve realmente a tentativa de assalto, quando ela retornava pelo mesmo caminho. Ela foi orientada a fazer um boletim de ocorrência. O que a gente sabe é que são situações isoladas, com apenas um fazendo abordagem, mas nunca com três elementos agindo”, diz o CEO da Runners Club, Carlos Felipe, o “Chokito”.
Outra corredora disse à reportagem que um atleta foi esfaqueado na Rua da Paciência, no trecho entre bares e o Campo Poliesportivo do Rio Vermelho. “Toda semana tem uma história bizarra. Há 20 dias, teve até facada. Está todo mundo com medo de correr”, relata. Já o corredor de rua e influenciador digital Alan Nunes relata que a vítima foi “um passante”. “Ele estava caído no Largo de Santana. Passei (correndo) quando ele era atendido pelo Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). O que fiquei sabendo foi que ele levou uma facada no braço durante uma tentativa de assalto”, declara Nunes.
Procurado, o titular da 7ª Delegacia (Rio Vermelho), o delegado Nilton Borba, disse que, no caso da tentativa de roubo contra a mulher, “não há registro, inclusive, tentamos localizar a vítima”. Já sobre o segundo fato, ele disse que “não teve faca”. “Um homem se desentendeu com um cara e saiu na mão”.
Para um bom desempenho nas corridas, não basta só um bom tênis. É preciso investir mais. Assim, o celular deixou de ser o único objeto desejado pelos ladrões. Agora, os acessórios dos corredores também caíram no gosto deles, como os smartwatches, que combinam as funcionalidades de um relógio tradicional com as capacidades de um computador, oferecendo uma ampla gama de recursos diretamente no pulso. E é fácil entender. O dispositivo tecnológico da marca Garmin, do modelo mais simples, custa, em média, R$ 1.400. A versão mais completa pode chegar a R$ 8 mil.
“É um relógio que oferece uma variedade de recursos, incluindo um monitoramento cardíaco, um GPS (sistema de navegação por satélite) com mais precisão, taxa de esforço e outras funcionalidades. É o mais ‘top’. A gente acredita que eles pegam para repassar para alguém, que por sua vez, vende no mercado informal, principalmente em grandes sites de compra, com os preços sempre abaixo do mercado. Quem vende usa sempre a justificativa de que está vendendo porque já tem outro”, conta um corredor.
Principal equipamento para corrida de rua, o tênis pode ser adquirido a partir de R$ 500. Mas o modelo mais caro disponível no Brasil, o Nike Hyper, pode chegar a R$ 3.500. Já os fones de ouvido mais avançados no momento, da Samsung Galaxy Buds, são vendidos por R$ 1.299. “Esses produtos só são comercializados nestes sites porque há infelizmente uma relação de oferta e procura e quem adquire são os próprios corredores, ciclistas. A gente orienta a todos para o não estímulo. Quem compra é tão criminoso quanto quem rouba, porque torna conivente. Um dia ele pode ser vítima do próprio reflexo do crime”, diz Chokito.
Segundo o CEO da Runners Club, a falta de segurança para quem pratica esportes na orla de Salvador “é algo preocupante”. Ele disse que as ocorrências são mais frequentes no início das manhãs, entre 4h30 e 8h, de segunda a sexta, e das 4h às 10h nos finais de semana. Os locais mais visados são o Parque dos Ventos, na Boca do Rio; Pituaçu; Amaralina; Rio Vermelho e toda a extensão da Barra. “Além de correntes, relógios, celulares, eles estão tomando também as bicicletas. Ou seja, risco também para os ciclistas. Na semana passada, levaram duas bikes, uma na Boca do Rio e outra em Pituaçu. A gente sabe que tem segurança na cidade, mas não para esse novo público que é uma realidade em Salvador e que os ladrões já enxergaram”, declara Chokito.
“Quanto mais gente, menos possibilidade de assalto. Mas ao longo do percurso, o pelotão vai se desfazendo, alguns ficam mais cansados e ficam para trás. É o momento em que eles atuam. Normalmente, miram mulheres e desacompanhadas”, diz uma moradora de Piatã, que faz parte de uma assessoria de corrida. “Mas quem corre por conta própria também é alvo. Alguns mostram a faca, mas outros falam apenas que estão armados. Mas quem vai arriscar para ver?”, emenda.
No ano passado, o CEO da Runners Club enviou um ofício pedindo mais policiamento para aumentar a sensação de quem pratica o esporte. “A PM (Polícia Militar) informou que a cidade é muito grande e precisa de uma cobertura maior, pois existem bairros mais perigosos que precisam de uma demanda maior, além do fato de que as vítimas costumam não ir às delegacias. Mas se fosse uma concentração maior das assessorias, com os registros das ocorrências, talvez fosse possível fazer um planejamento melhor da demanda de segurança”, diz o CEO da Runners Club.
Ele prepara um novo ofício. “Estamos produzindo e relatando os acontecimentos recentes, com o apoio de outras assessorias de corrida”, acrescenta. A reportagem procurou a Polícia Militar da Bahia (PMBA) para saber se já existe um planejamento e não obteve resposta.
O delegado Nilton Borba disse que, durante o dia no Rio Vermelho não há “ocorrências de roubo e furto há pelo menos seis meses”. “Tem roubos de celulares do pessoal que sai das festas e volta para casa de madrugada, mas a gente está tentando acabar, mas não são voluptuosas. Porém, há dois meses essas ocorrências vêm caindo”, declara.
O CORREIO tentou falar com os delegados titulares das delegacias responsáveis pelos registros das ocorrências na orla de Salvador – 14ª DP (Barra), 16ª DP (Pituba), 9ª DP (Boca do Rio) e 12ª DP (Itapuã) – mas sem sucesso. Então, foi pedido um posicionamento à Polícia Civil. “O Departamento Especializado de Investigações Criminais (Deic) e a Delegacia de Repressão a Furtos e Roubos realizam investigações contínuas para reprimir esse tipo de crime. Todos os casos registrados são apurados, com as devidas diligências de polícia judiciária sendo executadas”, diz nota da PC. A reportagem solicitou também à instituição o número de ocorrências de roubos na orla de Salvador, mas não foi informado.
A reportagem procurou saber da Polícia Militar como é feito o policiamento na orla de Salvador, mas a PM também não se pronunciou.